No Brasil, a sensibilidade moderna, afinada com os valores internacionais da arte e da política, tomou Brasília como o parâmetro de sua utopia. Exata, racional, desenhada, esta cidade estabeleceu os limites que separam a natureza da civilização, o cerrado da urbs. Seu caráter monumental acentua-se na enormidade da paisagem, nos seus espaços e silêncios. Assim também a arquitetura, com suas formas neutras e sóbrias ocupam um lugar preciso numa cartografia que define o aproveitamento racional dos espaços, dos blocos, das quadras e das super-quadras.
Os versos de Nicolas Behr – poeta cuiabano, radicado em Brasília – identificam com ironia o desenho da cidade, o padrão geométrico da cidade-parque concebida por Le Corbusier e reproduzida por Lúcio Costa. O componente lúdico dos versos do poeta desestabiliza e ao mesmo tempo reafirma a beleza racional da cidade. Esta, com sua face de esfinge o interroga:
SQS ou SOS?
Eis a questão!
Blocos,
eixos
quadras
senhores, esta cidade
é uma aula de geometria
As vias expressas de Brasília, como as de um autorama, controlam os deslocamentos dos automóveis no Plano Piloto, não deixam espaço para as calçadas. Com isso o pedestre tende a ser eliminado. A ausência de esquinas, e do rito de passagem dos passantes pelos espaços públicos é um traço radical da modernidade de Brasília, uma cidade sem ruas (HOLSTON).
Em Behr há uma tentativa de retomada das itinerâncias do pedestre. O poeta percorre a cidade a pé e não de automóvel, ele não vê o espaço urbano de forma geral e universalizante, mas mergulha no seu cotidiano, e assim a rua surge em forma de super-quadras, endereços codificados em letras e números formam um poema que se esconde nas formas esquadrinhadas das ausências e vazios de uma cidade que excluiu os passantes.
mapa na mão
olho no mapa
mão no olho
vamos tentar encontrar a cidade
Behr em Brasília, 1978.
SQS 415 F 303
SQN 303 F 415
NQS 403 F 315
QQQ 313 F 405
SSS 305 F 413
seria isso
um poema
sobre Brasília?
seria um poema?
seria Brasília?
O mapa nas mãos do poeta errante não mostra apenas a cidade planejada, mas expõe uma cartografia poética que reinventa a modelagem espacial do geometrismo do urbanista Lúcio Costa e do arquiteto Oscar Niemeyer que projetaram Brasília.
Essa cartografia poética também contém os tempos da história, ela anuncia e atualiza a memória, em uma cidade sem ruas e sem multidões, assinalando a redescoberta de um passado que ficou soterrado, uma história que não foi contada. Em Porque construí Braxilia Behr recupera um passado recente da história de Brasília evocando a figura do operário que construiu a capital:
dedico este
canteiro de obras
(Jardim operário)
aos esquecidos de
deus que construíram
esta cidade de Brasília
e que, um dia,
construirão comigo,
em sonho e sem dor,
a cidade de Braxília
(pronuncia-se brakslha,
Canalha)
Ao contrário do discurso progressista que quer justificar a construção de uma nova nação, a poesia recupera o tempo e o sujeito esquecidos pela história contada pelos vencedores e dá a eles outros significados. No entanto, em Braxília o X representa a cruz original sobre a qual foi projetado o cruzamento dos dois eixos. Permanece a essência da cidade, em uma reconstrução.
imagine brasília
não- capital
não- poder
não- brasília
assim é braxília
Em um novo mapa da cidade, os versos de Behr assinalam o lugar do excluído no projeto moderno:
dor arquivada
felicidade protocolada
utopia adiada
Brasília é o fracasso
mais bem planejado
de todos os tempos.
Muito foda, obrigada pela postagem!
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