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quarta-feira, 30 de junho de 2010

                                               

                                                 Evoé!


Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz (Maiakovski, 1907).


Na última quinta-feira (24/06), dia de São João, o Teatro Oficina, localizado na Rua Jaceguai, no Bexiga, em São Paulo, foi tombado em votação unânime realizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O processo de tombamento, que já tramitava há oito anos, vem reforçar a importância da proteção ao projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi assinado em 1986, ameaçado pela especulação imobiliária praticada pelo grupo Silvio Santos, que ao longo de 30 anos de disputas tentou se apropriar do espaço do teatro e modificar o seu entorno para a criação de um shopping center e de um conjunto residencial. Preocupado em preservar a estrutura do teatro, ameaçada por essas construções, o diretor José Celso Martinez Corrêa pediu a Gilberto Gil, Ministro da Cultura em 2003, para providenciar o tombamento. O Oficina já havia sido tombado em esfera estadual pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) em 1983, mas isso não impediu que os projetos de Silvio Santos continuassem.

Com o tombamento pelo Iphan, o Oficina tem a esperança de conseguir, finalmente, realizar o projeto do Teatro de Estádio, também arquitetado por Lina Bo Bardi nos anos 1980, e que hoje integra um projeto cultural de amplas dimensões, o chamado Anhangabaú da Feliz Cidade, para o bairro do Bexiga, onde está localizado o Oficina desde 1961.


 
Para conhecer o projeto: http://teatroficina.uol.com.br/teatro_estadio


Para ouvir Zé Celso sobre o projeto: http://teatroficina.uol.com.br/radio_uzonas

Com a proposta de uma Universidade Popular Antropofágica emerge um “novo teatro varado de cidade e de luz”. Sim, a cidade penetra pelos poros desse teatro, em constante renovação na formação de outra mentalidade teatral, livre de classificações, aberta aos cultos e incultos. Que venham todos!


 
O poder econômico separa, a cultura agrega. Zé Celso espera que o próprio grupo Silvio Santos possa participar do AnhangaBAÚ da Feliz Cidade pois,


o teatro é justamente o ponto de encontro do corpo a corpo da humanidade, paradoxalmente despida de seus figurinos na sociedade de espetáculos, plugada pelo Eros dos ‘em mins’ na multidão, pelo tesão de estar junto, além das barreiras dos teatrões das diferenças sociais. Esse estar junto é o ambicionar de um desejo coletivo que tem suas origens remotas na orgya. Nos mistérios de Eleusis dos gregos (Zé Celso, 2004).

A conversão a Dioniso: retorno a um deus ctônico – das profundezas da terra, das regiões infernais, na mitologia grega. Deus do vinho e da embriaguez, é também o deus do teatro que tem origem na orgia: Do grego órgia, festa de Baco; festim licencioso; bacanal; festa solene em honra de Dioniso ou Baco, na antiguidade grego-romana; entretenimento que em geral, inclui companhia alegre, bebidas, etc. Desordem; tumulto; anarquia; profusão; desperdício (Dicionário Aurélio, 1999). A orgia de um tempo ancestral, mitológico, acontecia quando se amassavam uvas e as pessoas ficavam em torno, bêbadas e incorporando espíritos, e depois iam para debaixo da terra, dos mistérios de Eleusis, e contemplavam os órgãos sexuais. Por fim, tomavam vinho com um forte componente alucinógeno.

A cultura, nas dimensões erótica e estética, representa para Zé Celso uma possibilidade de transgredir o mundo das estruturas castradoras e o teatro, uma forma dionisíaca de estabelecer vínculos. As propostas para o Teatro de Estádio afrontam a cultura hegemônica através de sua atração erótica, estética, na vida cotidiana sem, no entanto, excluir a possibilidade de integrar essa cultura, dialeticamente, ao projeto libertário de uma Feliz Cidade.

Não há porque estabelecer uma esquizofrenia dividindo o projeto em dois campos: um de um shopping e outro de um Teatro de Estádio. A origem dos shoppings modernos paradoxalmente está nos mercados das Índias que tanto seduziam o século de nossa chamada “descoberta”. Está nos deliciosos mercados populares árabes-judaicos, nos Mercados Persas, nas feiras brasileiras, nas grandes lojas soviéticas do início da revolução comunista, que inspiraram o ocidente e nos portais de Walter Benjamin, ruas-passagens por toda Paris. Portanto, retomando essas origens, chegamos ao eterno retorno. Assim, num plano de criação, os programas se copularão. O que hoje se chama shopping, poderá ser um trans-shopping (Zé Celso, 2004).

O Teatro Oficina, na década de 1960, foi um importante centro de vanguarda e de resistência aos anos autoritários da ditadura militar no Brasil. O Oficina traz consigo a memória de sua trajetória contestadora, nessa fusão ou confusão do estar junto, em uma permanente redescoberta da lógica do afeto, e da recusa em dominar o mundo, mas da absoluta necessidade de festejá-lo. Dioniso, deus das festas orgiásticas, das profundezas da terra, regiões infernais é também o deus do estar junto, do corpo amoroso, percebendo o mundo não só com a seriedade e assepsia herdadas dos modernos, mas também com o ventre, e com a lógica dos sentimentos, fundamental para os momentos de criação, quando os programas se copularão.

Na dimensão dionisíaca do cotidiano repousa o jogo das paixões individuais ou coletivas – inquietação permanente que caracteriza aquilo que somos, e o que gostaríamos de ser, ou sonhamos ser. Os afetos, os sentimentos, nos levam à turbulência, ao desconforto da multiplicidade. E é no contexto dessa realidade plural que atuamos, percebendo nas teatralidades do cotidiano as duplicidades vivenciadas em oposição aos poderes e às artimanhas do dia a dia contra certezas ideológicas e moralismos coercitivos. O Teatro Oficina, potencialmente dionisíaco, se opõe àqueles que ditam como deve ser o mundo, nos ensinando sobre o devir, contrapondo-se ao dever.


 
A Companhia está atualmente em Salvador, realizando as Dionisíacas 2010, atravessando as noites juninas, iluminadas por fogueiras, em um momento histórico para o grupo.
Arthur Omar e o estilhaçamento do cotidiano

Arthur Omar é um artista multimídia que atua em várias áreas da produção artística contemporânea, com trânsito nos campos da antropologia e da etnografia. Em Antropologia da face gloriosa - título de um belíssimo ensaio fotográfico no qual o artista capta os estados gloriosos de rostos no transe carnavalesco – Omar apresenta o estilhaçamento da cotidianidade, na captura do aqui e agora do carnaval, na sua fugacidade. Em suas fotografias podemos observar o bárbaro, o difuso e o transversal de um Brasil, que segundo o artista, é a soma das faces gloriosas que ele possa sustentar. Aritmética dos êxtases (Arthur Omar, 1997, Antropologia da face gloriosa). Omar pratica uma antropologia que só é possível com a sensibilidade poética de um olhar que encontra na dialética da cotidianidade, vivida pelo homo sapiens que também é homo demens – louco-sábio – uma forma de compreender e ao mesmo tempo afrontar a gramática normativa da vida diária. Bachelard dizia que ver diferente é a condição necessária para continuar a ver...

(...) os sentimentos gloriosos são todos aqueles situados levemente acima do normal. Embriaguez, fascinação, paixão, comoção, desvario, frenesi. Através deles, o homem atinge uma outra ordem de experiência. Sua casa é outra, já não está mais protegido pelo recesso do lar ou pelo quadriculado do trabalho (Arthur Omar, 1997, Antropologia da face gloriosa).

Num mundo dessacralizado, a fotografia seria o lugar de uma nova imortalidade, ou de uma ressurreição estética na qual a temporalidade de um corpo glorioso explode. Gloriosos tormentos. Nesses estados de transbordamento torna-se possível perceber o estilhaçamento da cotidianidade. Nas faces gloriosas que são divinas e demoníacas, carregam céu e inferno.

São os êxtases, os saíres de si, os estados gloriosos, manifestados nas faces gloriosas, que surgem em frações ínfimas de instantes em que esses estados (que são reais e que atravessam o indivíduo o tempo todo) se manifestam mais à superfície. Esses estados representam experiências e posições infinitamente mais complexas e refinadas do que o que se experimenta no cotidiano, e no mundo dos “papéis” em geral, inclusive no que está previsto no mundo da cultura. Sendo mais ricos e mais sofisticados do que se espera culturalmente e psicologicamente de um estado, eles representam uma contribuição, ou melhor, uma adição a um patrimônio, o que há de melhor que uma comunidade pode oferecer para sua própria identidade (Arthur Omar, 1997, Antropologia da face gloriosa).

Leite Zulu para harmonia química nacional


Mandarim da ambiguidade entre o ouro e a carne


A decapitação da noite é um ato parial


Disparando o sorriso como tiro de advertência


Rasgando o uniforme com taças de champanhe


Carrascos e estetas uniram-se


Segurando o destino para que não vire de bruços


O marginal do enigma será a rainha do ocidente
Iluminações profanas

De nada nos serve a tentativa patética ou fantástica de apontar no enigmático o seu lado enigmático; só devassamos o mistério na medida em que o encontramos no cotidiano, graças a ótica dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano. Por exemplo, a investigação mais apaixonada dos fenômenos telepáticos nos ensina menos sobre a leitura (processo eminentemente telepático) que a iluminação profana da leitura pode ensinar-nos sobre os fenômenos telepáticos. Da mesma forma, a investigação mais apaixonada da embriaguês produzida pelo haxixe nos ensina menos sobre o pensamento (que é um narcótico eminente) que a iluminação profana do pensamento pode ensinar-nos sobre a embriaguês do haxixe. O homem que lê, que pensa, que espera, que se dedica à flanerie, pertence, do mesmo modo que o fumador de ópio, o sonhador e o ébrio, à galeria dos iluminados. E são iluminados mais profanos. Para não falar da mais terrível de todas as drogas – nós mesmos – que tomamos quando estamos sós.

(Walter Benjamin, 1929, texto extraído do ensaio "O Surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia" In: Magia e técnica, arte e política. Editora Brasiliense)




Fotógrafo, pintor, escultor, criador de objetos, cineasta, poeta e filósofo, Man Ray, que viveu entre 1890 a 1976, participou intensamente de dois dos mais importantes movimentos de arte moderna, o dadaísmo e o surrealismo. Indicado para o Emmy, o Oscar da tevê americana, o documentário "Man Ray: O Profeta da Vanguarda" mostra a vida e obra desse artista, tão inquieto quanto revolucionário.


juliet e Margaret, 1948


Marcel Duchamp, Rose Sélavy, 1921


Noire et Blanche, 1926


Larmes, 1930


Lágrimas de vidro, 1930


La violon d'Ingres, 1924
Orixá

moro mima iô
abadô ia ye yeu ô
ai ai d'oxum
oxum mirê ye yeu

A palavra na fala da rua é imagem muda desfazendo-se em fios no curto circuito de uma frase. Oraieiêu Oxum! Aieiêu
E a menina das rosas vendidas sapateia areia nos despachos da praia, flores, velas, luzes, cores para Oxum.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Para o céu um belo azul, o mais azul dos azuis (a superfície é pintada até a saturação, vale dizer, até um ponto em que finalmente emerge o azul, a idéia do azul absoluto), e o mesmo vale para o verde da terra, para o vermelhão vibrante dos corpos (Henri Matisse).


      Henri Matisse: Horse, Rider, and Clown

Barquinhos de papel

Lancei barquinhos de papel
à enxurrada dos dias.
Ao meio-fio das calçadas, corriam
entre habitantes das sarjetas.
Entoando, os tripulantes, cânticos lúdicos
desconhecendo os hábitos da chuva
ao leito e às ruas do Maracanã.

O vento desmanchava os barcos
e ao desabrigo ficavam passageiros
órfãos do desejo, carentes de afeto
— pêndulos apenas —
agarravam-se a moléculas do papel
em extremado esforço. E às dobras
do corpo, a evitar destroços.

E ainda subvertem a lama e o cascalho
— apenas combatentes —
resistindo a corredeiras nas esquinas.
E, hoje, acreditando na atávica memória
de embarcações, a transgredir o sono,
lancei barquinhos de papel no espaço
e um leve frêmito, para acordar os pássaros.

Léa Lima
do Livro Cercanias do Outono.
 

Quando é dia de futebol




Em dia de Brasil na Copa, Drummond ganha camisa 10 da seleção
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2010/06/em-dia-de-brasil-na-copa-drummond-ganha-camisa-10-da-selecao.html

Futebol se joga no estádio?

Futebol se joga na praia,
futebol se joga na rua,
futebol se joga na alma.
A bola é a mesma: forma sacra
para craques e pernas-de-pau.
Mesma a volúpia de chutar
na delirante copa-mundo
ou no árido espaço do morro.
São voos de estátuas súbitas,
desenhos feéricos, bailados
de pés e troncos entrançados.
Instantes lúdicos: flutua
o jogador, gravado no ar
- afinal, o corpo triunfante
da triste lei da gravidade.

Carlos Drummond de Andrade
In Quando é dia de futebol, Editora Record.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago


Hoje o escritor que pintou em versos o Retrato do poeta quando jovem se foi, aos 87 anos. Muito já foi dito sobre Saramago, sobre o modo como revisitou a história de Portugal, e sobre a importância de sua obra para uma visão crítica dos problemas vividos pelo seu país. Mas para além das grandes preocupações temáticas que caracterizam seu universo ficcional, em seus escritos, há um tempo-lugar para o pequeno, ou para simplesmente as memórias sem lugar. Isso, a meu ver, é o que há de mais instigante neste autor. A audácia de Saramago não foi a de escrever poemas engajados ou romances que giraram em torno de temas políticos e sociais. A ousadia do escritor foi a de abrir sua obra para as interrogações do humano, enredando o leitor em parágrafos longos, sem ponto final, aspas ou travessão. A arquitetura dessa linguagem é quase como uma forma de respiração, um sussurro prolongado.

Ateu convicto, Saramago não temia a morte: “Não temo a morte – isso sim dói – é que a pessoa estava e de repente deixou de estar, se acabou”.

Mas, no espaço “curvo e finito da vida”, o escritor possuía uma estranha consciência de não ser:

Espaço Curvo e Finito

Oculta consciência de não ser
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças e ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.

In Os Poemas Possíveis, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981, 3ª edição.

 
 
 
Retrato do poeta quando jovem


Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição




Ensaio audiovisual sobre fotos de SEBASTIÃO SALGADO e narrativa de JOSÉ SARAMAGO.

Áudio original extraído do documentário JANELA DA ALMA de João Jardim e Walter
Carvalho (Brasil, 2001).

Trilha incidental: Hélio Delmiro ('Emotiva')
Adaptação e montagem: PEDRO BERSI (SC Brasil)
souzabersi@hotmail.com
WindsFilmesBRASIL 2007

"Eu não quero dizer que cada um é conforme nasce - não vou a esse ponto. Mas, talvez devêssemos ponderar por que algumas pessoas resistem ao comportamento digamos universal -- o modo de comportasse mais geral - e outras não? Por que algumas pessoas mantêm uma atitude crítica em relação às coisas? Por que algumas pessoas acham que não é por fato das coisas serem novas ou modernas que elas são necessariamente boas? Isto não é defender o antigo... é simplesmente considerar que não tem nenhuma razão para acreditar que no momento em que estou a viver é o momento em que todas as coisas que se estão a fazer - as de agora e as que vão ter efeitos no futuro - são as únicas e as melhores que poderiam estar a ser feitas e a ser pensadas, imaginadas e aplicadas. Não tenho qualquer razão para isso, pelo contrário, tenho muitas razões que me dizem que nos tomamos por um caminho errado."


Por JOSÉ SARAMAGO

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Os poetas e as coisas


Coisa é tudo o que há. É tudo quanto existe. É o que é: concretude do circunstancial; materialidade das imagens, dos objetos.

Da memória das coisas:
A presença das coisas em Drummond é matéria de poesia. O poeta se deixa contagiar por objetos, imagens, memórias. A palavra-coisa condensa a própria experiência do mundo.

Resíduo


De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.




Carlos Drummond de Andrade

In A Rosa do Povo
José Olympio, 1945
© Graña Drummond




Das coisas do mundo:


Também como um poeta das coisas, Manuel de Barros adquiriu “o vício de amar as coisas jogadas fora”, como Duchamp, ele transforma matéria viva em poesia. O desimportante ganha destaque. O mundo é revirado. Surgem do imundo “os loucos de estandarte”.

Desejar ser

8.

Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.

Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.

IX

O poema é antes de tudo um inutensílio.
Hora de iniciar algum
convém se vestir de roupa de trapo.
Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.

Faz bem uma janela aberta.
Uma veia aberta.

Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
Enquanto vida houver

Ninguém é pai de um poema sem morrer












Manoel de Barros

"Desejar Ser"
In Livro Sobre Nada (1966-1998)
Ed. Record, 3a. ed., Rio de Janeiro, 1996

O divino nas coisas


Marc Chagal: Aniversário, 1915

Marc Chagal: Telhados de Paris

 Marc Chagal: Eu e minha aldeia, 1911


As raízes de Marc Chagal estão mergulhadas na visão de mundo das comunidades judaicas da Europa Ocidental do final do século XIX, em especial, no Hassidismo, movimento espiritual que afirma a presença divina em todas as coisas.


Nas telas do pintor tudo é possível, a alteração concreta da realidade se dá em um território mágico que desfaz qualquer fronteira entre a objetividade do real e o universo dos sentimentos místicos. A poética de Chagal, cara ao movimento surrealista, é a própria exaltação do inconsciente, do ilógico. Em suas telas as coisas estão interligadas, e o presente é também a lembrança do passado. A fantasmagoria das cidades é pintada com poesia e afeto.



 
 
A tradução das coisas:

Nas coisas existe um núcleo que resiste a qualquer tradução. Esse núcleo nos remete àquilo que costumamos chamar de “poético” e é o que leva o tradutor a ultrapassar a sua intenção imediata – muitas vezes fracassada – de traduzir um texto original para também poetizar.

Esse aspecto material da linguagem lembra-nos do que Benjamin dizia sobre a criança que entra nas palavras como quem entra em cavernas, criando caminhos estranhos em um universo a ser explorado. Algo parecido com o percurso do poeta/tradutor quando penetra na linguagem, criando seus caminhos, suas errâncias.



 
 

 
 

 

De olho no olho da rua


Moita

Ontem, nem oito da noite, vi um casal trepando dentro de um fusquinha creme numa rua semideserta atrás de casa. O mais curioso é que a ruazinha dá pros fundos de um motel. As janelas do fusquinha estavam abertas, só consegui ver a sombra de uma das caras, que se levantou quando ouviu passos, o que fazer nessas horas? O negócio parecia bastante animado. O vigia da rua assistia tudo como é comum dos vigias assistirem tudo: com cara de averiguação. Alguns viralatas ao redor também. Dois deles, inclusive, cheiravam os pneus do carro. A vida real é muito convincente.

Texto extraído de: http://didimocolizemos.wordpress.com/2010/04/23/moita/

Entre achados e perdidos da vida como ela é o real nunca é muito convincente, mas não se pode duvidar de um vigia com cara de averiguação, farejando a cena de um casal trepando dentro de um fusquinha creme em uma rua semi deserta que dá para os fundos de um motel.

Daí em diante tudo é matéria de história nessas imagens-memória.

Foi dito por Paulo José que Um navio no espaço ou Ana Cristina Cesar poderia ser visto como uma louvação a obra da escritora Ana Cristina Cesar. No entanto, o espetáculo é mais que o culto a uma personalidade literária. Para além dos clichês e das fórmulas encontradas nas literatices teatrais atuais essa montagem incorpora a forma fragmentada da escrita da poeta em textos-colagens, construídos das sobras de um sujeito estilhaçado.
A atriz Ana Kutner, filha de Paulo José, é quem interpreta e narra a breve, mas intensa, trajetória de Ana Cristina César.
No cenário, o ato de escrever é reproduzido com videografismos e animações que recriam a forma como a poeta desenhava, datilografava ou rascunhava os seus textos transformando-os em uma espécie de palimpsesto. A inserção do audiovisual no espaço cênico proporciona ao público uma visão cubista do espetáculo.
A platéia se emociona com a atuação de Paulo José e com a trajetória da escritora em versos como:

Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos

Pergunto aqui se sou louca
Quem saberá dizer
Pergunto mais se sou são
E ainda mais, se sou eu.

segunda-feira, 7 de junho de 2010


                             M
EM     UDO
T
FAL      A





Escrito por Eloiza Gurgel


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Escrito por Eloiza Gurgel