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segunda-feira, 26 de julho de 2010

O poeta do castelo

A poesia de Manuel Bandeira assemelha-se a uma espécie de diário íntimo em que os acontecimentos do mundo revelam-se em imagens que materializam a estranheza do poeta diante da vida, da morte, do seu cotidiano, dos seus amores. O tom irônico e, muitas vezes, amargo, entediado, melancólico, é ao mesmo tempo a lembrança saudosa de um tempo não vivido que aponta para o devir de uma promessa de felicidade , em um futuro-passado feliz: Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei...

Na obra de Bandeira o emprego do verso livre – marca das experimentações do modernismo – não é uma exclusividade. Em suas últimas obras o poeta recorre a formas fixas, entre elas o soneto; escreveu, inclusive, uma cantiga medieval. Essa liberdade em se apropriar de diferentes formas expressivas o levou, por outros caminhos, à fala coloquial, a uma poesia simples, direta; aos fatos do cotidiano; aos temas do amor e do erotismo.

Nas palavras do poeta: (...) a poesia está em tudo - tanto nos amores quanto nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas (Itinerário de Parságada, 1954).

Em O Poeta do Castelo (1959), documentário de Joaquim Pedro de Andrade, há um encontro do cinema com a literatura. O cineasta incorpora em seu filme a linguagem poética de Bandeira, para quem a poesia é feita de pequenos nadas (Libertinagem, 1930). No filme Bandeira lê alguns dos seus poemas encenando o seu cotidiano em um pequeno apartamento no centro do Rio de Janeiro, no bairro do Castelo. Essas imagens privilegiam, pelas lentes de Joaquim Pedro, e segundo o mesmo, o retrato espiritual do poeta (Expressão utilizada pelo cineasta na proposta encaminhada ao Instituto Nacional do Livro, que acabou por financiar o seu filme).

Gestos banais, a solidão, um encontro provocado por um telefonema, o passeio matinal pelas ruas do centro da cidade são imagens carregadas de poesia, de “pequenos nadas”. Há uma re-elaboração cinematográfica que emancipa o filme das injunções documentais. Não se quer falar sobre o autor, mas há o desejo de captar a força da sua linguagem. Em um momento muito especial do cinema brasileiro, tanto o cineasta quanto o poeta transformam os fragmentos do cotidiano em matéria de poesia.

 
 
 
Testamento
 
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros – perdi-os...
Tive amores – esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!


Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


O último poema

Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.


Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Manuel Bandeira (1886-1968), Antologia Poética, Editora José Olympio.

2 comentários:

  1. Um gênio compactua com outro gênio e, assim, pude tomar café da manhã, levada pelas mãos de Joaquim Pedro de Andrade, ao apartamento de Bandeira. E que conversas tivemos! Ele a dizer-me poemas, eu a reverenciá-lo. Estupefante confirmação: Rio de Janeiro, fora a Pasárgada, onde namorei sem culpa. Só quem eu quis, em tempo onde houvera amor. Bjcs, tia Léa

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  2. Realmente, este espaço é uma maravilha. parabens. Indicarei nas minhas páginas, aguarde.
    Beijabrações
    www.luizalbertomachado.com.br

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