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segunda-feira, 26 de julho de 2010

O poeta do castelo

A poesia de Manuel Bandeira assemelha-se a uma espécie de diário íntimo em que os acontecimentos do mundo revelam-se em imagens que materializam a estranheza do poeta diante da vida, da morte, do seu cotidiano, dos seus amores. O tom irônico e, muitas vezes, amargo, entediado, melancólico, é ao mesmo tempo a lembrança saudosa de um tempo não vivido que aponta para o devir de uma promessa de felicidade , em um futuro-passado feliz: Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei...

Na obra de Bandeira o emprego do verso livre – marca das experimentações do modernismo – não é uma exclusividade. Em suas últimas obras o poeta recorre a formas fixas, entre elas o soneto; escreveu, inclusive, uma cantiga medieval. Essa liberdade em se apropriar de diferentes formas expressivas o levou, por outros caminhos, à fala coloquial, a uma poesia simples, direta; aos fatos do cotidiano; aos temas do amor e do erotismo.

Nas palavras do poeta: (...) a poesia está em tudo - tanto nos amores quanto nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas (Itinerário de Parságada, 1954).

Em O Poeta do Castelo (1959), documentário de Joaquim Pedro de Andrade, há um encontro do cinema com a literatura. O cineasta incorpora em seu filme a linguagem poética de Bandeira, para quem a poesia é feita de pequenos nadas (Libertinagem, 1930). No filme Bandeira lê alguns dos seus poemas encenando o seu cotidiano em um pequeno apartamento no centro do Rio de Janeiro, no bairro do Castelo. Essas imagens privilegiam, pelas lentes de Joaquim Pedro, e segundo o mesmo, o retrato espiritual do poeta (Expressão utilizada pelo cineasta na proposta encaminhada ao Instituto Nacional do Livro, que acabou por financiar o seu filme).

Gestos banais, a solidão, um encontro provocado por um telefonema, o passeio matinal pelas ruas do centro da cidade são imagens carregadas de poesia, de “pequenos nadas”. Há uma re-elaboração cinematográfica que emancipa o filme das injunções documentais. Não se quer falar sobre o autor, mas há o desejo de captar a força da sua linguagem. Em um momento muito especial do cinema brasileiro, tanto o cineasta quanto o poeta transformam os fragmentos do cotidiano em matéria de poesia.

 
 
 
Testamento
 
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros – perdi-os...
Tive amores – esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!


Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


O último poema

Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.


Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Manuel Bandeira (1886-1968), Antologia Poética, Editora José Olympio.
   Foto de Arthur Omar: Antropologia da face gloriosa


Bacanal


Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!


Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em doudo assomo...
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas do amores,
Cobras de lívidos venenos...
Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres,
Além de versos e mulheres?...
- vinhos!... o vinho que é o meu fraco!...
Evoé Baco!

O alfanje rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que eu não domo!...
Evoé Momo!

A lira etérea, a grande lira!...
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos,
Evoé Vênus!



Manuel Bandeira (1886-1968), Antologia Poética, Editora José Olympio.

 2005-510117385-5 – A imagem do invisível

A matéria-prima da obra de Rosângela Rennó são os arquivos e inventários, a artista opera como uma colecionadora de restos. Em seu último trabalho – um livro catálogo doado para a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional, Rennó digitalizou 101 imagens do século XIX, de fotógrafos como Marc Ferrez, Albert Frisch, J. Gutierrez e Benjamin Mulock. Mas ao abrir o livro, vê-se apenas o verso das fotos, variando do branco ao amarelado, quando muito vê-se o contorno dos barcos nas fotos de Ferrez, que se revela pela transparência do papel.

Essas fotos foram furtadas da Biblioteca Nacional em 2005, por criminosos nunca encontrados e devolvidas aos poucos para a instituição em péssimo estado de conservação. Para se retirar a identificação de origem das imagens, as fotos foram rasgadas nas bordas.

Em vez de direcionar o olhar para as imagens fotografadas, Rennó volta-se a sua destruição, reproduzindo o verso das fotos, com as margens rasgadas, quinas cortadas e marcas provocadas pela cola e seus escritos lixados e apagados com tinta guache.

A artista atuou como uma arquivista, reproduzindo todas as fotos devolvidas à Biblioteca Nacional, das 751 furtadas, reunindo-as pela ordem em que elas foram recuperadas. Em seu livro, um texto informativo relata a história do furto, realizado durante a greve dos funcionários da instituição, entre 2 de abril e 14 de Julho de 2005. O número do inquérito da investigação, até agora não concluída, 2005-510117385-5, é também título do livro.

A imagem cega é o que me move – diz Rosângela, que em “Blind Wall” (Parede Cega) pintou cem fotos de branco. – meu interesse é dar visibilidade a um material que, por alguma razão, é do interesse de alguma instituição tornar-se invisível (Jornal O Globo, 16/fevereiro/ 2010)


Marc Ferrez: Encouraçado Riachelo (Revolta da Armada, 1893)
 
Marc Ferrez: Ilha de Villegaignon (Revolta da Armada, 1893)
 
Henschel & Benque: Fazenda da Cachoeira
 
 Henschel & Benque: Fazenda da Cachoeira


De tudo
restou
um chumaço de poeira




Por Eloiza Gurgel

sábado, 17 de julho de 2010

Cinema de arquivo

Os filmes de compilação, segundo Jay Leyda, em “Films Berget Films” (1964, inédito no Brasil), são aqueles cujo trabalho começa na mesa de montagem, a partir de planos filmados previamente existentes”. Nunca isso foi tão atual. Mas, em tempos de remix, os planos previamente filmados ganham outro sentido havendo a preocupação com a restituição da memória, ao mesmo tempo em que há um gesto profanador que re-organiza as imagens documentais quebrando a linearidade do tempo.

Em uma abertura da linguagem, na sua dimensão poética, metafórica, o arquivo perde a sua suposta estabilidade documental, não se constituindo apenas de traços patentes e ostensivos, mas também pelas múltiplas leituras possíveis.

Daí a importância de festivais como o do Recine, que se constitui como um espaço aberto para discutir as novas narrativas que incorporam as imagens de arquivo na re-edição das nossas memórias, nossas histórias.

RECINE – Festival Internacional de Cinema de Arquivo – é uma parceria entre o Arquivo Nacional e a empresa Rio de Cinema Produções Culturais. O RECINE de 2010 começa dia 13 e acaba em 17 de setembro no Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Estão abertas as inscrições para a mostra competitiva e para a oficina de vídeo. Mais informações em: http://www.recine.com.br/2010/home.php
Jean-Michel Basquiat


O jovem pintor afro-americano era filho de Gerard Jean-Baptiste Basquiat, ex-ministro do interior do Haiti que se tornou proprietário de um grande escritório de contabilidade ao imigrar para os Estados Unidos e de Mathilde Andrada, de origem portorriquenha. Era o primeiro, dos três filhos do casal, de classe média alta.

Aos sete anos, por ocasião de um atropelamento que o deixou, durante algum tempo imobilizado, sua mãe lhe dá de presente um livro de anatomia, o Gray's Anatomy. As impactantes imagens desse livro estariam, tempos depois, nas pinturas, nos graffites e desenhos de Basquiat, e até no nome da banda musical de curta duração fundada pelo artista em 1979, a Gray's, uma banda que assumia as influências dos ventos latinos, vindos do Caribe e de Porto Rico, influências essas que sopravam sobre a cena artística de Nova York, nas manifestações do hip hop, do break e do rap.

Notary, 1983

Basquiat toma contato com suas origens latinas quando se muda com o pai e as irmãs para Porto Rico, durante o período de 1974 a 1976. Aos 17 anos está de volta a Nova York e não consegue se adaptar às escolas convencionais. Passa a freqüentar a Edward R. Murrow High School mas a abandona praticamente no final do curso, sai de casa, vai morar com amigos, e passa a pintar camisetas que ele mesmo vende nas ruas.

Com o artista gráfico Al Diaz cria a SAMO (same old shit - mesma velha merda), marca e assinatura que usava para espalhar as suas obras pelas paredes da cidade. Passa a viver nas ruas e a grafitar paredes, portas de casas e metrôs de Nova York.

Aos poucos torna-se uma celebridade. Em um programa de TV a cabo é convidado a participar do filme Downtown 81. Esse filme relata um dia na vida do jovem artista e apresenta um cenário artístico e musical do qual fazem parte as expressões do hip hop, do new wave e do graffiti, manifestações que emergiam no início dos efervescentes anos 1980 em Manhattan.


Pegasus, 1987

Basquiat começou a ser mais amplamente reconhecido em junho de 1980 quando participou do The Times Square Show, uma exposição de vários artistas patrocinada por uma instituição de nome "Colab". Em 1981, o poeta, crítico de arte e provocador cultural Rene Ricard publicou um artigo em que comentava sobre Basquiat. Isso alavancou a carreira do artista internacionalmente. Nos anos consecutivos, ele continuou a exibir sua obra em Nova yorque ao lado de artistas como Keith Haring e Barbara Kruger. Também realizou exposições internacionais com a ajuda de galeristas famosos.

Já em 1982, Basquiat era visto freqüentemente na companhia de Julian Schnabel, David Salle e outros curadores, colecionadores e especialistas em arte que seriam conhecidos depois como os "neo-expressionistas". Ele começou a namorar, também, uma cantora desconhecida na época, Madonna. Neste mesmo ano, conheceu Andy Warhol, com quem colaborou ostensivamente e cultivou amizade.

Warhol proporcionou a Basquiat lugar para morar, materiais para trabalhar, além de ajudar a divulgar o seu trabalho e patrocinar algumas excentricidades. Nessa época Basquiat abandona a arte de rua e o graffiti. O projeto "SAMO" acabou com o epitáfio "SAMO IS DEAD" (SAMO está morto) escrito nas paredes de construções do SoHo novaiorquino.

Basquiat começa a pintar telas que passam a ser adquiridas e comercializadas por marchands de Zurique, Nova York, Tóquio e Los Angeles, ávidos por novidades. De artista que vivia precariamente passa a ser um artista consumido e recebido nos salões mais importantes de Nova York.


Exu, 1988

Gravestone, 1987

A arte de Basquiat, chamada pelos críticos de "primitivismo intelectualizado", uma tendência neo-expressionista, apresenta ícones negros da música e do boxe, cenas da vida urbana, além de colagens, junto a pinceladas nervosas, rabiscos, escritas indecifráveis, sempre em cores fortes e em telas grandes. Quase sempre o elemento negro está retratado, em meio ao caos. Há também uma dessacralização de ícones da história da arte, como a sua Mona Lisa (acrílico e óleo sobre tela) que é uma figura monstruosa riscada no suporte.

O período mais criativo da curta vida e da carreira meteórica de Basquiat situa-se entre 1982-1985, e coincide com a amizade com Warhol, época em que faz colagens e quadros com mensagens escritas, que remetem às suas raízes africanas. É também o período em que começa a participar de grandes exposições.

A morte do amigo e protetor Andy Warhol, em 1987, deixa o artista abalado e isso se reflete na sua criação. Os críticos, sempre muito exigentes, já não o tratam com unanimidade e Basquiat responde a essas cobranças, associando-as ao racismo da sociedade americana.


Untitled, 1981

Native Cerrying Some Guns, Bibles, Amorites on Safari, 1982

Solitário, exagera no consumo de drogas e em agosto de 1988 acontece a trágica morte por overdose de heroína, que põe fim à carreira brilhante do primeiro afro-americano a ter acesso à fechada cena das artes plásticas novaiorquinas. Basquiat esteve presente nas mais importantes mostras do mundo, entre elas, uma sala especial, em 1996, na 23ª Bienal de São Paulo, e em 1998, numa retrospectiva na Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Em 2010, para comemorar o 50.° aniversário do nascimento de Basquiat, a Fundação Beyeler (Basileia, Suíça), dedica ao artista uma retrospectiva, a primeira com esta envergadura a ser apresentada na Europa. Estão expostas centenas de pinturas em tela, desenhos e muitos outros objetos provenientes dos grandes museus do mundo e de algumas coleções particulares - uma bela mostra do percurso desse artista.

Basquiat & Friends- Gespräch mit Freunden von Jean-Michel Basquiat
Fondation Beyeler
Baselstrasse 101, Riehen, Basileia, Suíça
Até 5 de Setembro

quarta-feira, 14 de julho de 2010



Estanca o batuqe dos atabaques/ Tremores da Terra elucubrações/ Dobras profusas em língua cantante/ Pianola rabeca viola/ Quem tocará?/ Berimbaus agogõs caxixis./ Que é Sinhá de seu alguidar? / (...) / Castiga o couro ao pandeiro/ A chuva tarda ao regato/ Inescrutável caverna/ Aiyê gemido agonia/ Da água à montanha ao ebó/ Não há mais forro nem gleba./ Que é Sinhá de seu patuá?

Trecho do poema "Lamentos de Iya Aiyê" de Léa Madureira Lima
Paulo Moura antes de partir



Sábado 10 de julho Paulo Moura reuniu forças para tocar a última música – "Doce de Côco", de Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho – com seu parceiro de longa data Wagner Tiso, acompanhados por Daniela Spielman e Vicente Alexin ( clarinetas). Ao lado de sua mulher Halina, o filho Domingos, o sobrinho Gabriel, amigos e admiradores, e alguns pacientes da Clínica São Vicente, maravilhados com aquela inusitada e comovente celebração musical. Ele faleceu na segunda feira, 12 de julho.

Quando chegar ao céu, certamente o mestre se encontrará com Pixinguinha, com muitos anjinhos chorões e batuqueiros...
http://www.paulomoura.com/
Alberto Magnelli


O italiano Alberto Magnelli será homenageado pelo Museu de Arte Contemporânea da USP com uma mostra em sua sede no Ibirapuera (SP). Desta quarta-feira (14) até 12 de setembro, 64 pinturas do artista, realizadas entre 1912 e 1969, ganham exposição. As obras pertencem a acervos da França e da Bélgica, além de coleções particulares brasileiras e ao próprio MAC USP.

Magnelli (1888-1971) foi um dos pioneiros da abstração, membro destacado do grupo Abstración Création de Paris. Em Florença, o contato com os futuristas o levou a flertar com o modernismo e, mais tarde, em Paris, se identificou com o cubismo. Convivendo com Appolinaire, Picasso, Léger, Gris e Archipenko, é o encontro com Matisse que influencia a composição de interiores com figuras humanas, em cores fortes e contornos pretos.




Esta é uma sequência do filme " Limite " (1931), um clássico do cinema mudo brasileiro, dirigido por Mario Peixoto - Brasil - 1929. As imagens do filme foram incorporadas a uma experimentação do videoartista americano Thiooof.


As produções audiovisuais contemporâneas, de diferentes maneiras, constroem a materialidade das nossas memórias, instaurando variadas temporalidades com os cacos de acontecimentos passados, com o material de diversos arquivos. Os novos processos de produção de subjetividades marcam uma sociedade que se relaciona com o tempo passado (re) visitando ou (re) mixando seus arquivos, suas “caixas de guardados”.
 Em face à mundo em que o tempo está contraído, e aquilo que se apresenta em construção rapidamente torna-se ruína, inusitados processos de criação dão um outro sentido às pérolas encontradas no “lixo” midiático e em outros lixos, as ruínas do nosso tempo.




Trabalho de animação gráfica com as fotografias de Man Ray e música de Ratatat


Um documentário interessante


We.Music, produzido e dirigido pela Galeria Experiência e desenvolvido por Pix, Remix Social Ideas e o MIS, é um interessante documentário sobre a transformação no campo da produção, distribuição e consumo musical causada pela revolução digital, mais particularmente a web. O vídeo mostra como, no caso da música, mas podemos extrapolar também para outras áreas, a marca da cibercultura é o remix, a liberdade de emissão, a facilidade de produção de conteúdo, o domínio da produção e da distribuição, a autonomia dos produtores em relação às indústrias de massa, a possibilidade de conhecimento de novos parceiros e do trabalho colaborativo à distância… http://andrelemos.info/2010/06/we-music/


Sobre a música do/no novo ecosistema comunicativo criado pela internet em:
http://vimeo.com/12678461

A densidade de Dragos

Umespaço aparentemente caótico, arrumado segundo suas próprias regras, estruturado segundo uma ordem que não é a comum. Uma composição densa, cheia de surpresas, saturada de tons requintados, compõe o repertório formal do pintor Nicolai Dragos. Semifigurativo como os do grupo Cobra, sua originalidade o leva próximo a Picasso. Romeno, agressivo, 55 anos, radicado desde 1976 no Brasil, seu currículo é grande e espalhado pelo mundo.
(Flávio de Aquino, 1985)

Sinfonia rosa com baixo cifrado, 1986

As máscaras dos nossos mortos, 1986

Convivência gongórica, 1986

Labirinto antromoformo, 1986
ROBERT POLIDORI

O Instituto Moreira Salles (IMS) do Rio de Janeiro, em junho/2009, realizou uma retrospectiva do fotógrafo canadense Robert Polidori e apresentou seus principais ensaios fotográficos realizados desde os anos 80, como as séries sobre Havana e Beirute; as cidades de Pripyat e Chernobyl, quinze anos após o acidente nuclear ocorrido em 1986; e Nova Orleans devastada pelo furacão Katrina, em 2006.  O fotógrafo não registra conflitos, como fazem os fotojornalistas, e sim as marcas deixadas por tragédias e desastres da história contemporânea. A maior parte de suas imagens exibe ambientes vazios, revirados ou parcialmente destruídos, que foram abandonados depois de um choque violento.
As fotografias de Polidori deparam-nos com uma ausência e ao mesmo tempo com a materialidade de uma imagem que está diante de nós, em um movimento que expõe e oculta o que poderia ter ocorrido no local fotografado, algo como o próprio exercício do olhar na construção da memória.

Tupelo Street, Nova Orleans, Lousiana, 2005


Quarto de dormir da senhora Faxas, Havana, Cuba, 1997


Sala de aula em ecola, Pripyat, Ucrânia, 2001


Lamanche Street


Casa da senhora Faxas, Miramar, Havana, 1997


De forma geral, para mim a “fotografia contemporânea” é um ícone em que diferentes verdades simultâneas coexistem, vivem ao mesmo tempo. É isso que a diferencia das outras fotografias, como as “ilustrativas” ou as “documentais” (Robert Polidori, 2009)

Fotografias de Robert Polidori em:
FLANAR



A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos gnomos e dos silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino e risos de navalha, o prodígio de uma criança mais sabida e cética que os velhos de setenta invernos, mas cuja ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca teve preocupações, criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d’ouro que se faz lama e torna a ser poeira – a rua criou o garoto!


Essas qualidades nós as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar. É fatigante o exercício?

Para os iniciados sempre foi grande regalo. A musa de Horácio, a pé, não fez outra coisa nos quarteirões de Roma. Sterne e Hoffmann proclamavam-lhe a profunda virtude, e Balzac fez todos os seus preciosos achados flanando. Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti de casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja.

É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janela como Paul Adam, admira o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua; à porta do café, como Poe no Homem da Multidões, dedica-se ao exercício de adivinhar as profissões, as preocupações e até os crimes dos transeuntes. É uma espécie de secreta à maneira de Sherlock Holmes, sem os inconvenientes dos secretas nacionais. Haveis de encontrá-lo numa bela noite numa noite muito feia. Não vos saberá dizer donde vem, que está a fazer, para onde vai. Pensareis decerto estar diante de um sujeito fatal? Coitado! O flâneur é o bonhomme possuidor de uma alma igualitária e risonha, falando aos notáveis e aos humildes com doçura, porque de ambos conhece a face misteriosa e cada vez mais se convence da inutilidade da cólera e da necessidade do perdão.

João do Rio, 1908: trecho extraído do livro A Alma Encantadora das Ruas. Fundação Biblioteca Nacional.
ROBERTO PIVA

No dia 03/07 morreu em São Paulo o poeta Roberto Piva, aos 72 anos. O escritor sofria de mal de Parkinson há cerca de dez anos e descobriu um câncer na próstata, em metástase, durante a internação. Em janeiro, Piva já havia passado por uma angioplastia.
A imagem do poeta sobrevive, em sua versão baudelaireana, perambulando pelas ruas de São Paulo.

Piva perseguiu e viveu o ideal do poeta-profeta, recebendo, em vida, mais pedradas do que reconhecimentos dos seus contemporâneos. Por ter sido um escritor incômodo para o leitor convencional sua obra foi vítima de certa conspiração de silêncio, poucos a conhecem. Sua obra completa foi publicada em três volumes pela Editora Globo. O primeiro volume: Um estrangeiro na legião; o segundo: Estranhos sinais de saturno; o terceiro: Livro na mão & asas pretas.

A genealogia da obra poética de Piva é constituída por influências que formam uma mistura-fina única por sua erudição, mas também por sua transgressão. Na década de 60, o poeta aprofundou-se nos estudos da Divina Comédia. Esse contato com Dante foi a sua iniciação poético-filosófica: marcou para sempre sua visão de mundo, sua política e sua poesia. Ainda nesse período teve contato com os poetas metafísicos ingleses, sobretudo William Blake, e ainda com Hölderlin e com os poetas expressionistas alemães Gottfried Benn e Georg Trakl. A essas influências soma-se a obra contundente de um filósofo praticamente desconhecido no Brasil nessa época: Friedrich Nietzsche.

A literatura desse autor, segundo Alcir Pécora, é uma literatura que respira literatura. Impossível falar de Piva escritor sem falar de Piva leitor. Mas a presença de outros autores em seus escritos não pode ser reduzida à influência ou imitação. Surge do diálogo com diferentes vozes um estilo próprio, resultado de intertextualidades.

Em Rimbaud Piva descobre o desregramento de todos os sentidos para se chegar à poesia. Mas é a partir de Artaud que ele incorpora a idéia de que existe um compromisso absoluto entre poesia e vida. O dito artaudiano para conhecer minha obra, leia-se minha vida teve em Piva a contrapartida: só acredito em poeta experimental que tem vida experimental.

Dos poetas brasileiros, são influências importantes para Piva as figuras de Murilo Mendes - com seu surrealismo intenso, espontâneo e sensorial, ao contrário dos franceses intelectualizados - e Jorge de Lima, sobretudo aquele barroco, visionário e atormentado de “Invenção de Orfeu”. Os elementos finais da construção poética de Piva evidenciam uma substancial ligação com o aspecto mágico.

Suas constantes caminhadas xamânicas pela represa de Mairiporã e serra da Cantareira, ambas nos arredores de São Paulo, além de Jarinu, no interior do estado, selaram sua ligação sagrada com a natureza.

Essa sacralidade era, para Piva, a única salvação possível ao mundo moderno, que colocou a destruição da natureza como parte do seu projeto consumista. No quadro da recuperação do sagrado e do mágico, enquanto forças da natureza, Piva passou a estudar e praticar o xamanismo. Para aprender o culto ao primitivo e às forças da natureza, foi buscar elementos não apenas em teóricos como Mircea Eliade, mas sobretudo nas culturas indígenas brasileiras e na prática do candomblé. Ele não só cultuava seus orixás (Xangô, Yemanjá e Oxum) mas também tocava tambor para invocar seu animal xamânico, o gavião.

Paralelamente a essa trajetória em direção ao sagrado, Piva agregou dois elementos ligados à civilização grega. Um: a ingestão de drogas alucinógenas e bebidas libatórias, como formas de atualizar a tradição dionisíaca e a transgressão sagrada do paganismo. Dois: o culto a uma erótica homossexual, trazendo para a modernidade o amor grego, como um componente de transgressão do desejo.

Mesmo internado, o poeta - que fazia questão de dizer que não era piedoso - manteve a postura rebelde. Há dez dias, ele tentou fugir do hospital. Ele arrancou as sondas, estava bravo e queria sair fora. Ele detestava hospital, achava que era tudo magia negra, afirma Gustavo Benini, 32, companheiro de Piva há mais de dez anos (Jornal Folha de São Paulo, 03/07/2010).

Em meio ao caos da cidade de São Paulo o poeta mergulhou em torres de chumbo, na constelação de cinza da metrópole e em almas inoxidáveis flutuando sobre a estação das angústias suarentas. Contrapondo-se ao pensamento discursivo o autor cria imagens como: Tua boca engolia o azul; Estátuas com conjuntivite olham-me fraternalmente.

O ministro da Cultura Juca Ferreira divulgou em uma nota:

Se a morte de um poeta é sempre uma tragédia, a morte de alguém como Piva é um imenso baque a mais, já que a energia que alimentava sua poesia era a exaltação da carnalidade. Essa sua energia enfrentou, nos anos 60 e 70, além da repressão, a estranheza que se voltava contra pregadores, como ele, de uma poética do desregramento. Piva assumiu a responsabilidade de expressar as nossas carências e delírios extremos.

Ao referir-se às produções de Hilda Hilst e de Roberto Piva como algo decisivo para a literatura contemporânea brasileira, Pécora afirma:

São literaturas que querem encarar tudo. Justamente por isso, uma vez exposto à leitura delas, é difícil resistir à administração das pessoas que as conceberam: gente que despudoradamente diz o que ninguém quer ouvir, e está disposta a pagar o preço pela inconveniência. Difícil não amar gente inconformada, num mundo de mansos. (...) Definitivamnte, com Piva, como com Blake, permanecem válidos os parâmetros de um romantismo exacerbado, no qual a prudência é apenas uma solteirona rica e malcheirosa, a serviço da impotência e da negação da alegria. (...) A questão decisiva de uma linguagem que se recusa a uma leitura pobre, e, portanto, que visa à construção de um texto abstruso ou incongruente, supõe justamente a manutenção em primeiro plano tanto da questão do interdito quanto do desejo de transgressão para acesso renovado e criador de sentidos (Nota do organizador: Obras reunidas vol.1: Um Estrangeiro na Legião, Editora Globo).

A poesia de Piva também possui forte influência dos poetas beat americanos, herança de uma geração denominada por alguns críticos de “maldita”. No entanto, Piva não era facilmente classificável. Há em sua obra o predomínio da linhagem maldita do romantismo, mas em sua escrita, o gesto de transgressão é, acima de tudo, resistência às classificações literárias e à própria institucionalização da vida.


Poema Vertigem

Eu sou uma metralhadora em
      estado de Graça
Eu sou a pomba-gira do Absoluto





Poema porrada


Eu estou farto de muita coisa
não me transformarei em subúrbio
não serei uma válvula sonora
não serei paz
eu quero a destruição de tudo que é frágil:
       cristãos fábricas palácios
       juízes patrões e operários
uma noite destruída cobre os dois sexos
minha alma sapateia feito louca
um tiro de máuser atravessa o tímpano de
      duas centopéias
o universo é cuspido pelo cu sangrento
     de um deus cadela
as vísceras se comovem
eu preciso dissipar o encanto do meu velho
     esqueleto
eu preciso esquecer que existo
mariposas perjuram o céu de cimento
eu me entrincheiro no Arco-Íris
Ah voltar de novo à janela
     perder o olhar nos telhados como
     se fossem o universo
o girassol de Oscar Wilde entardece sobre os tetos
eu preciso partir um dia para muito longe
o mundo exterior tem pressa demais para mim
São Paulo e a Rússia não podem parar
quando eu ia ao colégio Deus tapava os ouvidos para mim?
a Morte olha-me da parede pelos olhos apodrecidos
     de Modigliani
eu gostaria de incendiar os pentelhos de Modigliani
minha alma louca aponta para a lua
vi os professores e seus cálculos discretos ocupando
    o mundo do espírito
vi as criancinhas vomitando nos radiadores
vi as canetas dementes hortas tampas de privada
abro os olhos as nuvens tornam-se mais duras
trago o mundo na orelha como um brinco imenso
a loucura é um espelho na manhã de pássaros sem fôlego


Roberto Piva: Obras reunidas vol.1: Um estrangeiro na legião. Editora Globo.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

                                               

                                                 Evoé!


Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz (Maiakovski, 1907).


Na última quinta-feira (24/06), dia de São João, o Teatro Oficina, localizado na Rua Jaceguai, no Bexiga, em São Paulo, foi tombado em votação unânime realizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O processo de tombamento, que já tramitava há oito anos, vem reforçar a importância da proteção ao projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi assinado em 1986, ameaçado pela especulação imobiliária praticada pelo grupo Silvio Santos, que ao longo de 30 anos de disputas tentou se apropriar do espaço do teatro e modificar o seu entorno para a criação de um shopping center e de um conjunto residencial. Preocupado em preservar a estrutura do teatro, ameaçada por essas construções, o diretor José Celso Martinez Corrêa pediu a Gilberto Gil, Ministro da Cultura em 2003, para providenciar o tombamento. O Oficina já havia sido tombado em esfera estadual pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) em 1983, mas isso não impediu que os projetos de Silvio Santos continuassem.

Com o tombamento pelo Iphan, o Oficina tem a esperança de conseguir, finalmente, realizar o projeto do Teatro de Estádio, também arquitetado por Lina Bo Bardi nos anos 1980, e que hoje integra um projeto cultural de amplas dimensões, o chamado Anhangabaú da Feliz Cidade, para o bairro do Bexiga, onde está localizado o Oficina desde 1961.


 
Para conhecer o projeto: http://teatroficina.uol.com.br/teatro_estadio


Para ouvir Zé Celso sobre o projeto: http://teatroficina.uol.com.br/radio_uzonas

Com a proposta de uma Universidade Popular Antropofágica emerge um “novo teatro varado de cidade e de luz”. Sim, a cidade penetra pelos poros desse teatro, em constante renovação na formação de outra mentalidade teatral, livre de classificações, aberta aos cultos e incultos. Que venham todos!


 
O poder econômico separa, a cultura agrega. Zé Celso espera que o próprio grupo Silvio Santos possa participar do AnhangaBAÚ da Feliz Cidade pois,


o teatro é justamente o ponto de encontro do corpo a corpo da humanidade, paradoxalmente despida de seus figurinos na sociedade de espetáculos, plugada pelo Eros dos ‘em mins’ na multidão, pelo tesão de estar junto, além das barreiras dos teatrões das diferenças sociais. Esse estar junto é o ambicionar de um desejo coletivo que tem suas origens remotas na orgya. Nos mistérios de Eleusis dos gregos (Zé Celso, 2004).

A conversão a Dioniso: retorno a um deus ctônico – das profundezas da terra, das regiões infernais, na mitologia grega. Deus do vinho e da embriaguez, é também o deus do teatro que tem origem na orgia: Do grego órgia, festa de Baco; festim licencioso; bacanal; festa solene em honra de Dioniso ou Baco, na antiguidade grego-romana; entretenimento que em geral, inclui companhia alegre, bebidas, etc. Desordem; tumulto; anarquia; profusão; desperdício (Dicionário Aurélio, 1999). A orgia de um tempo ancestral, mitológico, acontecia quando se amassavam uvas e as pessoas ficavam em torno, bêbadas e incorporando espíritos, e depois iam para debaixo da terra, dos mistérios de Eleusis, e contemplavam os órgãos sexuais. Por fim, tomavam vinho com um forte componente alucinógeno.

A cultura, nas dimensões erótica e estética, representa para Zé Celso uma possibilidade de transgredir o mundo das estruturas castradoras e o teatro, uma forma dionisíaca de estabelecer vínculos. As propostas para o Teatro de Estádio afrontam a cultura hegemônica através de sua atração erótica, estética, na vida cotidiana sem, no entanto, excluir a possibilidade de integrar essa cultura, dialeticamente, ao projeto libertário de uma Feliz Cidade.

Não há porque estabelecer uma esquizofrenia dividindo o projeto em dois campos: um de um shopping e outro de um Teatro de Estádio. A origem dos shoppings modernos paradoxalmente está nos mercados das Índias que tanto seduziam o século de nossa chamada “descoberta”. Está nos deliciosos mercados populares árabes-judaicos, nos Mercados Persas, nas feiras brasileiras, nas grandes lojas soviéticas do início da revolução comunista, que inspiraram o ocidente e nos portais de Walter Benjamin, ruas-passagens por toda Paris. Portanto, retomando essas origens, chegamos ao eterno retorno. Assim, num plano de criação, os programas se copularão. O que hoje se chama shopping, poderá ser um trans-shopping (Zé Celso, 2004).

O Teatro Oficina, na década de 1960, foi um importante centro de vanguarda e de resistência aos anos autoritários da ditadura militar no Brasil. O Oficina traz consigo a memória de sua trajetória contestadora, nessa fusão ou confusão do estar junto, em uma permanente redescoberta da lógica do afeto, e da recusa em dominar o mundo, mas da absoluta necessidade de festejá-lo. Dioniso, deus das festas orgiásticas, das profundezas da terra, regiões infernais é também o deus do estar junto, do corpo amoroso, percebendo o mundo não só com a seriedade e assepsia herdadas dos modernos, mas também com o ventre, e com a lógica dos sentimentos, fundamental para os momentos de criação, quando os programas se copularão.

Na dimensão dionisíaca do cotidiano repousa o jogo das paixões individuais ou coletivas – inquietação permanente que caracteriza aquilo que somos, e o que gostaríamos de ser, ou sonhamos ser. Os afetos, os sentimentos, nos levam à turbulência, ao desconforto da multiplicidade. E é no contexto dessa realidade plural que atuamos, percebendo nas teatralidades do cotidiano as duplicidades vivenciadas em oposição aos poderes e às artimanhas do dia a dia contra certezas ideológicas e moralismos coercitivos. O Teatro Oficina, potencialmente dionisíaco, se opõe àqueles que ditam como deve ser o mundo, nos ensinando sobre o devir, contrapondo-se ao dever.


 
A Companhia está atualmente em Salvador, realizando as Dionisíacas 2010, atravessando as noites juninas, iluminadas por fogueiras, em um momento histórico para o grupo.
Arthur Omar e o estilhaçamento do cotidiano

Arthur Omar é um artista multimídia que atua em várias áreas da produção artística contemporânea, com trânsito nos campos da antropologia e da etnografia. Em Antropologia da face gloriosa - título de um belíssimo ensaio fotográfico no qual o artista capta os estados gloriosos de rostos no transe carnavalesco – Omar apresenta o estilhaçamento da cotidianidade, na captura do aqui e agora do carnaval, na sua fugacidade. Em suas fotografias podemos observar o bárbaro, o difuso e o transversal de um Brasil, que segundo o artista, é a soma das faces gloriosas que ele possa sustentar. Aritmética dos êxtases (Arthur Omar, 1997, Antropologia da face gloriosa). Omar pratica uma antropologia que só é possível com a sensibilidade poética de um olhar que encontra na dialética da cotidianidade, vivida pelo homo sapiens que também é homo demens – louco-sábio – uma forma de compreender e ao mesmo tempo afrontar a gramática normativa da vida diária. Bachelard dizia que ver diferente é a condição necessária para continuar a ver...

(...) os sentimentos gloriosos são todos aqueles situados levemente acima do normal. Embriaguez, fascinação, paixão, comoção, desvario, frenesi. Através deles, o homem atinge uma outra ordem de experiência. Sua casa é outra, já não está mais protegido pelo recesso do lar ou pelo quadriculado do trabalho (Arthur Omar, 1997, Antropologia da face gloriosa).

Num mundo dessacralizado, a fotografia seria o lugar de uma nova imortalidade, ou de uma ressurreição estética na qual a temporalidade de um corpo glorioso explode. Gloriosos tormentos. Nesses estados de transbordamento torna-se possível perceber o estilhaçamento da cotidianidade. Nas faces gloriosas que são divinas e demoníacas, carregam céu e inferno.

São os êxtases, os saíres de si, os estados gloriosos, manifestados nas faces gloriosas, que surgem em frações ínfimas de instantes em que esses estados (que são reais e que atravessam o indivíduo o tempo todo) se manifestam mais à superfície. Esses estados representam experiências e posições infinitamente mais complexas e refinadas do que o que se experimenta no cotidiano, e no mundo dos “papéis” em geral, inclusive no que está previsto no mundo da cultura. Sendo mais ricos e mais sofisticados do que se espera culturalmente e psicologicamente de um estado, eles representam uma contribuição, ou melhor, uma adição a um patrimônio, o que há de melhor que uma comunidade pode oferecer para sua própria identidade (Arthur Omar, 1997, Antropologia da face gloriosa).

Leite Zulu para harmonia química nacional


Mandarim da ambiguidade entre o ouro e a carne


A decapitação da noite é um ato parial


Disparando o sorriso como tiro de advertência


Rasgando o uniforme com taças de champanhe


Carrascos e estetas uniram-se


Segurando o destino para que não vire de bruços


O marginal do enigma será a rainha do ocidente
Iluminações profanas

De nada nos serve a tentativa patética ou fantástica de apontar no enigmático o seu lado enigmático; só devassamos o mistério na medida em que o encontramos no cotidiano, graças a ótica dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano. Por exemplo, a investigação mais apaixonada dos fenômenos telepáticos nos ensina menos sobre a leitura (processo eminentemente telepático) que a iluminação profana da leitura pode ensinar-nos sobre os fenômenos telepáticos. Da mesma forma, a investigação mais apaixonada da embriaguês produzida pelo haxixe nos ensina menos sobre o pensamento (que é um narcótico eminente) que a iluminação profana do pensamento pode ensinar-nos sobre a embriaguês do haxixe. O homem que lê, que pensa, que espera, que se dedica à flanerie, pertence, do mesmo modo que o fumador de ópio, o sonhador e o ébrio, à galeria dos iluminados. E são iluminados mais profanos. Para não falar da mais terrível de todas as drogas – nós mesmos – que tomamos quando estamos sós.

(Walter Benjamin, 1929, texto extraído do ensaio "O Surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia" In: Magia e técnica, arte e política. Editora Brasiliense)




Fotógrafo, pintor, escultor, criador de objetos, cineasta, poeta e filósofo, Man Ray, que viveu entre 1890 a 1976, participou intensamente de dois dos mais importantes movimentos de arte moderna, o dadaísmo e o surrealismo. Indicado para o Emmy, o Oscar da tevê americana, o documentário "Man Ray: O Profeta da Vanguarda" mostra a vida e obra desse artista, tão inquieto quanto revolucionário.


juliet e Margaret, 1948


Marcel Duchamp, Rose Sélavy, 1921


Noire et Blanche, 1926


Larmes, 1930


Lágrimas de vidro, 1930


La violon d'Ingres, 1924
Orixá

moro mima iô
abadô ia ye yeu ô
ai ai d'oxum
oxum mirê ye yeu

A palavra na fala da rua é imagem muda desfazendo-se em fios no curto circuito de uma frase. Oraieiêu Oxum! Aieiêu
E a menina das rosas vendidas sapateia areia nos despachos da praia, flores, velas, luzes, cores para Oxum.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Para o céu um belo azul, o mais azul dos azuis (a superfície é pintada até a saturação, vale dizer, até um ponto em que finalmente emerge o azul, a idéia do azul absoluto), e o mesmo vale para o verde da terra, para o vermelhão vibrante dos corpos (Henri Matisse).


      Henri Matisse: Horse, Rider, and Clown

Barquinhos de papel

Lancei barquinhos de papel
à enxurrada dos dias.
Ao meio-fio das calçadas, corriam
entre habitantes das sarjetas.
Entoando, os tripulantes, cânticos lúdicos
desconhecendo os hábitos da chuva
ao leito e às ruas do Maracanã.

O vento desmanchava os barcos
e ao desabrigo ficavam passageiros
órfãos do desejo, carentes de afeto
— pêndulos apenas —
agarravam-se a moléculas do papel
em extremado esforço. E às dobras
do corpo, a evitar destroços.

E ainda subvertem a lama e o cascalho
— apenas combatentes —
resistindo a corredeiras nas esquinas.
E, hoje, acreditando na atávica memória
de embarcações, a transgredir o sono,
lancei barquinhos de papel no espaço
e um leve frêmito, para acordar os pássaros.

Léa Lima
do Livro Cercanias do Outono.