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quarta-feira, 14 de julho de 2010

ROBERTO PIVA

No dia 03/07 morreu em São Paulo o poeta Roberto Piva, aos 72 anos. O escritor sofria de mal de Parkinson há cerca de dez anos e descobriu um câncer na próstata, em metástase, durante a internação. Em janeiro, Piva já havia passado por uma angioplastia.
A imagem do poeta sobrevive, em sua versão baudelaireana, perambulando pelas ruas de São Paulo.

Piva perseguiu e viveu o ideal do poeta-profeta, recebendo, em vida, mais pedradas do que reconhecimentos dos seus contemporâneos. Por ter sido um escritor incômodo para o leitor convencional sua obra foi vítima de certa conspiração de silêncio, poucos a conhecem. Sua obra completa foi publicada em três volumes pela Editora Globo. O primeiro volume: Um estrangeiro na legião; o segundo: Estranhos sinais de saturno; o terceiro: Livro na mão & asas pretas.

A genealogia da obra poética de Piva é constituída por influências que formam uma mistura-fina única por sua erudição, mas também por sua transgressão. Na década de 60, o poeta aprofundou-se nos estudos da Divina Comédia. Esse contato com Dante foi a sua iniciação poético-filosófica: marcou para sempre sua visão de mundo, sua política e sua poesia. Ainda nesse período teve contato com os poetas metafísicos ingleses, sobretudo William Blake, e ainda com Hölderlin e com os poetas expressionistas alemães Gottfried Benn e Georg Trakl. A essas influências soma-se a obra contundente de um filósofo praticamente desconhecido no Brasil nessa época: Friedrich Nietzsche.

A literatura desse autor, segundo Alcir Pécora, é uma literatura que respira literatura. Impossível falar de Piva escritor sem falar de Piva leitor. Mas a presença de outros autores em seus escritos não pode ser reduzida à influência ou imitação. Surge do diálogo com diferentes vozes um estilo próprio, resultado de intertextualidades.

Em Rimbaud Piva descobre o desregramento de todos os sentidos para se chegar à poesia. Mas é a partir de Artaud que ele incorpora a idéia de que existe um compromisso absoluto entre poesia e vida. O dito artaudiano para conhecer minha obra, leia-se minha vida teve em Piva a contrapartida: só acredito em poeta experimental que tem vida experimental.

Dos poetas brasileiros, são influências importantes para Piva as figuras de Murilo Mendes - com seu surrealismo intenso, espontâneo e sensorial, ao contrário dos franceses intelectualizados - e Jorge de Lima, sobretudo aquele barroco, visionário e atormentado de “Invenção de Orfeu”. Os elementos finais da construção poética de Piva evidenciam uma substancial ligação com o aspecto mágico.

Suas constantes caminhadas xamânicas pela represa de Mairiporã e serra da Cantareira, ambas nos arredores de São Paulo, além de Jarinu, no interior do estado, selaram sua ligação sagrada com a natureza.

Essa sacralidade era, para Piva, a única salvação possível ao mundo moderno, que colocou a destruição da natureza como parte do seu projeto consumista. No quadro da recuperação do sagrado e do mágico, enquanto forças da natureza, Piva passou a estudar e praticar o xamanismo. Para aprender o culto ao primitivo e às forças da natureza, foi buscar elementos não apenas em teóricos como Mircea Eliade, mas sobretudo nas culturas indígenas brasileiras e na prática do candomblé. Ele não só cultuava seus orixás (Xangô, Yemanjá e Oxum) mas também tocava tambor para invocar seu animal xamânico, o gavião.

Paralelamente a essa trajetória em direção ao sagrado, Piva agregou dois elementos ligados à civilização grega. Um: a ingestão de drogas alucinógenas e bebidas libatórias, como formas de atualizar a tradição dionisíaca e a transgressão sagrada do paganismo. Dois: o culto a uma erótica homossexual, trazendo para a modernidade o amor grego, como um componente de transgressão do desejo.

Mesmo internado, o poeta - que fazia questão de dizer que não era piedoso - manteve a postura rebelde. Há dez dias, ele tentou fugir do hospital. Ele arrancou as sondas, estava bravo e queria sair fora. Ele detestava hospital, achava que era tudo magia negra, afirma Gustavo Benini, 32, companheiro de Piva há mais de dez anos (Jornal Folha de São Paulo, 03/07/2010).

Em meio ao caos da cidade de São Paulo o poeta mergulhou em torres de chumbo, na constelação de cinza da metrópole e em almas inoxidáveis flutuando sobre a estação das angústias suarentas. Contrapondo-se ao pensamento discursivo o autor cria imagens como: Tua boca engolia o azul; Estátuas com conjuntivite olham-me fraternalmente.

O ministro da Cultura Juca Ferreira divulgou em uma nota:

Se a morte de um poeta é sempre uma tragédia, a morte de alguém como Piva é um imenso baque a mais, já que a energia que alimentava sua poesia era a exaltação da carnalidade. Essa sua energia enfrentou, nos anos 60 e 70, além da repressão, a estranheza que se voltava contra pregadores, como ele, de uma poética do desregramento. Piva assumiu a responsabilidade de expressar as nossas carências e delírios extremos.

Ao referir-se às produções de Hilda Hilst e de Roberto Piva como algo decisivo para a literatura contemporânea brasileira, Pécora afirma:

São literaturas que querem encarar tudo. Justamente por isso, uma vez exposto à leitura delas, é difícil resistir à administração das pessoas que as conceberam: gente que despudoradamente diz o que ninguém quer ouvir, e está disposta a pagar o preço pela inconveniência. Difícil não amar gente inconformada, num mundo de mansos. (...) Definitivamnte, com Piva, como com Blake, permanecem válidos os parâmetros de um romantismo exacerbado, no qual a prudência é apenas uma solteirona rica e malcheirosa, a serviço da impotência e da negação da alegria. (...) A questão decisiva de uma linguagem que se recusa a uma leitura pobre, e, portanto, que visa à construção de um texto abstruso ou incongruente, supõe justamente a manutenção em primeiro plano tanto da questão do interdito quanto do desejo de transgressão para acesso renovado e criador de sentidos (Nota do organizador: Obras reunidas vol.1: Um Estrangeiro na Legião, Editora Globo).

A poesia de Piva também possui forte influência dos poetas beat americanos, herança de uma geração denominada por alguns críticos de “maldita”. No entanto, Piva não era facilmente classificável. Há em sua obra o predomínio da linhagem maldita do romantismo, mas em sua escrita, o gesto de transgressão é, acima de tudo, resistência às classificações literárias e à própria institucionalização da vida.


Poema Vertigem

Eu sou uma metralhadora em
      estado de Graça
Eu sou a pomba-gira do Absoluto





Poema porrada


Eu estou farto de muita coisa
não me transformarei em subúrbio
não serei uma válvula sonora
não serei paz
eu quero a destruição de tudo que é frágil:
       cristãos fábricas palácios
       juízes patrões e operários
uma noite destruída cobre os dois sexos
minha alma sapateia feito louca
um tiro de máuser atravessa o tímpano de
      duas centopéias
o universo é cuspido pelo cu sangrento
     de um deus cadela
as vísceras se comovem
eu preciso dissipar o encanto do meu velho
     esqueleto
eu preciso esquecer que existo
mariposas perjuram o céu de cimento
eu me entrincheiro no Arco-Íris
Ah voltar de novo à janela
     perder o olhar nos telhados como
     se fossem o universo
o girassol de Oscar Wilde entardece sobre os tetos
eu preciso partir um dia para muito longe
o mundo exterior tem pressa demais para mim
São Paulo e a Rússia não podem parar
quando eu ia ao colégio Deus tapava os ouvidos para mim?
a Morte olha-me da parede pelos olhos apodrecidos
     de Modigliani
eu gostaria de incendiar os pentelhos de Modigliani
minha alma louca aponta para a lua
vi os professores e seus cálculos discretos ocupando
    o mundo do espírito
vi as criancinhas vomitando nos radiadores
vi as canetas dementes hortas tampas de privada
abro os olhos as nuvens tornam-se mais duras
trago o mundo na orelha como um brinco imenso
a loucura é um espelho na manhã de pássaros sem fôlego


Roberto Piva: Obras reunidas vol.1: Um estrangeiro na legião. Editora Globo.

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