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sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago


Hoje o escritor que pintou em versos o Retrato do poeta quando jovem se foi, aos 87 anos. Muito já foi dito sobre Saramago, sobre o modo como revisitou a história de Portugal, e sobre a importância de sua obra para uma visão crítica dos problemas vividos pelo seu país. Mas para além das grandes preocupações temáticas que caracterizam seu universo ficcional, em seus escritos, há um tempo-lugar para o pequeno, ou para simplesmente as memórias sem lugar. Isso, a meu ver, é o que há de mais instigante neste autor. A audácia de Saramago não foi a de escrever poemas engajados ou romances que giraram em torno de temas políticos e sociais. A ousadia do escritor foi a de abrir sua obra para as interrogações do humano, enredando o leitor em parágrafos longos, sem ponto final, aspas ou travessão. A arquitetura dessa linguagem é quase como uma forma de respiração, um sussurro prolongado.

Ateu convicto, Saramago não temia a morte: “Não temo a morte – isso sim dói – é que a pessoa estava e de repente deixou de estar, se acabou”.

Mas, no espaço “curvo e finito da vida”, o escritor possuía uma estranha consciência de não ser:

Espaço Curvo e Finito

Oculta consciência de não ser
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças e ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.

In Os Poemas Possíveis, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981, 3ª edição.

 
 
 
Retrato do poeta quando jovem


Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição




Ensaio audiovisual sobre fotos de SEBASTIÃO SALGADO e narrativa de JOSÉ SARAMAGO.

Áudio original extraído do documentário JANELA DA ALMA de João Jardim e Walter
Carvalho (Brasil, 2001).

Trilha incidental: Hélio Delmiro ('Emotiva')
Adaptação e montagem: PEDRO BERSI (SC Brasil)
souzabersi@hotmail.com
WindsFilmesBRASIL 2007

"Eu não quero dizer que cada um é conforme nasce - não vou a esse ponto. Mas, talvez devêssemos ponderar por que algumas pessoas resistem ao comportamento digamos universal -- o modo de comportasse mais geral - e outras não? Por que algumas pessoas mantêm uma atitude crítica em relação às coisas? Por que algumas pessoas acham que não é por fato das coisas serem novas ou modernas que elas são necessariamente boas? Isto não é defender o antigo... é simplesmente considerar que não tem nenhuma razão para acreditar que no momento em que estou a viver é o momento em que todas as coisas que se estão a fazer - as de agora e as que vão ter efeitos no futuro - são as únicas e as melhores que poderiam estar a ser feitas e a ser pensadas, imaginadas e aplicadas. Não tenho qualquer razão para isso, pelo contrário, tenho muitas razões que me dizem que nos tomamos por um caminho errado."


Por JOSÉ SARAMAGO

Um comentário:

  1. Oi, querida Lolô! Emocionou-me essa tríade de música, lirismo e cadência de palavras em tanta harmonia, em seu blog! Lembrei-me da Lélia Coelho Frota, que esteve com Drummond aos 17, levando seus poemas timidamente pra, depois, envolver-se inteira, ao sinal do mestre, na mais bela trajetória em versos estudos pesquisas. O artista popular brasileiro ganhou Dicionário. Salvou o dia de um lugar-comum. Desde 27/05, ao lado de Drummond, Lélia recebe, agora, Saramago e leva a senha de entrada que, aqui na terra a escrever, ficou Manoel de Barros -- Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade, que é o entendimento do corpo; e o da inteligência, que é o entendimento do espírito. Eu escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender mas para incorporar. Entender é parede: procure ser uma árvore!-- Bjcs, tia Léa

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