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segunda-feira, 14 de junho de 2010

Os poetas e as coisas


Coisa é tudo o que há. É tudo quanto existe. É o que é: concretude do circunstancial; materialidade das imagens, dos objetos.

Da memória das coisas:
A presença das coisas em Drummond é matéria de poesia. O poeta se deixa contagiar por objetos, imagens, memórias. A palavra-coisa condensa a própria experiência do mundo.

Resíduo


De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.




Carlos Drummond de Andrade

In A Rosa do Povo
José Olympio, 1945
© Graña Drummond




Das coisas do mundo:


Também como um poeta das coisas, Manuel de Barros adquiriu “o vício de amar as coisas jogadas fora”, como Duchamp, ele transforma matéria viva em poesia. O desimportante ganha destaque. O mundo é revirado. Surgem do imundo “os loucos de estandarte”.

Desejar ser

8.

Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.

Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.

IX

O poema é antes de tudo um inutensílio.
Hora de iniciar algum
convém se vestir de roupa de trapo.
Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.

Faz bem uma janela aberta.
Uma veia aberta.

Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
Enquanto vida houver

Ninguém é pai de um poema sem morrer












Manoel de Barros

"Desejar Ser"
In Livro Sobre Nada (1966-1998)
Ed. Record, 3a. ed., Rio de Janeiro, 1996

O divino nas coisas


Marc Chagal: Aniversário, 1915

Marc Chagal: Telhados de Paris

 Marc Chagal: Eu e minha aldeia, 1911


As raízes de Marc Chagal estão mergulhadas na visão de mundo das comunidades judaicas da Europa Ocidental do final do século XIX, em especial, no Hassidismo, movimento espiritual que afirma a presença divina em todas as coisas.


Nas telas do pintor tudo é possível, a alteração concreta da realidade se dá em um território mágico que desfaz qualquer fronteira entre a objetividade do real e o universo dos sentimentos místicos. A poética de Chagal, cara ao movimento surrealista, é a própria exaltação do inconsciente, do ilógico. Em suas telas as coisas estão interligadas, e o presente é também a lembrança do passado. A fantasmagoria das cidades é pintada com poesia e afeto.



 
 
A tradução das coisas:

Nas coisas existe um núcleo que resiste a qualquer tradução. Esse núcleo nos remete àquilo que costumamos chamar de “poético” e é o que leva o tradutor a ultrapassar a sua intenção imediata – muitas vezes fracassada – de traduzir um texto original para também poetizar.

Esse aspecto material da linguagem lembra-nos do que Benjamin dizia sobre a criança que entra nas palavras como quem entra em cavernas, criando caminhos estranhos em um universo a ser explorado. Algo parecido com o percurso do poeta/tradutor quando penetra na linguagem, criando seus caminhos, suas errâncias.



 
 

 
 

 

Um comentário:

  1. Lolô, minha linda !!! Agora, você extrapolou a beleza, nesse blog de pura arte e paixão. Parabéns! Estou aqui babando, vou de lenço de papel mesmo! Se nele, podemos escrever, amei Chagal em animação russa. E Drummond e Manoel de Barros e Haroldo de Campos (essa eu vi na TV, por acaso). Vamos à missa das artes, em prece à penitência dos loucos, no preciosismo da criação. Bjcs da tia Léa

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